terça-feira, 1 de maio de 2012

Uma Escola sem Relógio nem Calendário


       Quando eu fazia magistério em uma tradicional escola denominacional no interior de São Paulo, já ouvia meus professores dizerem que “a escola tem que preparar para a vida”. Lá se vão 28 anos. Desde então, passei pela universidade, pelo mestrado e pelo doutorado, pelo pós-doutorado: o discurso não mudou – “a escola tem que preparar para a vida!”. Também acho. Tanto acho que me desespero ao ver que a escola brasileira é uma escola do tipo autossuficiente no tempo e no espaço, uma escola cujos muros delineiam não apenas o formato do terreno, mas a sua invariável teimosia em não mudar e cujos portões servem para uma a viagem no tempo muito mais do que para uma viagem ao mundo do conhecimento. 
      A escola brasileira surgiu, lá no século XVI, como um centro de catequização. Era uma escola funcional, que servia para amansar índios e dar um pouco de educação aos filhos dos bandidos portugueses trazidos ao Brasil para os fins da colonização. Nesse tempo, senhores e barões não mandavam seus filhos para a escola, pois traziam a escola que queriam para dentro de casa, contratando professoras estrangeiras que educavam seus filhos com o rigor que a educação de um senhor exige. Enquanto os filhos dos índios e dos bandidos aprendiam a ser bonzinhos, os filhos dos ricos aprendiam a ser senhores e a mandar. Mais do que isso, os filhos dos senhores aprendiam a ser fiéis à causa de seus pais. O escravo não conhecia nenhuma das duas escolas: a segunda, ele não conhecia porque não tinha dinheiro para bancá-la; a primeira, não conhecia porque ainda “não tinha alma”, e a Igreja Romana não catequizava quem “não tinha alma”.
         Essas duas escolas tão diferentes, a catequista e a senhorista, conviveram por muito tempo juntas, sem conflitos mais significativos do que aqueles que já havia na sociedade, simplesmente pelo fato de que serviam à mesma causa: manter a sociedade como era, em sua “normalidade”. Afinal, o mundo é assim desde que o conhecemos: uns mandam, outros obedecem, e o “argumento do cacete” é o que mais funciona. 
       Mas, o Brasil foi crescendo e aumentando sua economia. Já era, então, um país “cristão e pacificado”. Entramos na era industrial! As multinacionais vieram se instalando, uma a uma, num país de plantadores de café e cana e extrativistas de borracha, que havia recebido até então, em seus ciclos migratórios, apenas agricultores e analfabetos. Precisávamos formar trabalhadores “qualificados para apertar botões”! Esse parece ser o ponto da história em que surge o mito educacional de que “educamos as pessoas para que sejam alguém na vida.” É engraçado – e tristíssimo! - como esse mito pegou e permanece até hoje.
      Porém, o brasileiro, com seu jeitinho pra tudo já havia aprendido que um pouquinho de religião africana convive bem com um pouquinho de cristianismo místico, que as coisas não são assim tão distantes, que é possível conciliar Maria e Iemanjá sem muito esforço, enfim... tudo aqui se ajeita... E ainda mais com um bocado de cerveja e feijoada. Aprendemos a acreditar na enorme besteira de que não somos um povo afeito a terrorismos e guerras: preferimos comida, bebida, sexo e futebol. Tudo numa boa. Mas a realidade do país sempre mostrou coisas bem diferentes: revoluções, revoltas populares, tráfico, milícias, desorganização social e todo tipo de violência. Só que isso não importava para a escola: precisávamos de apertadores de botões! Como todas as economias que crescem, precisávamos de “trabalhadores qualificados”. 
       O mito da transformação do “nada” em “gente” pela escola está mais vivo do que nunca. Pergunta-se a qualquer brasileiro normal por que ele manda o filho pra escola e ele responde: “Para ele ser alguém na vida!” e completa: “Hoje, sem estudo, a gente não arruma emprego.” Maravilha! Então, o povo estuda para ser alguém na vida, porque na verdade filho de pobre nasce “ninguém”. O povo estuda para arrumar um emprego, e não para ter a própria empresa ou para mandar em alguma coisa. O povo manda o filho para a escola já sonhando com o concurso público, com “a vaga na firma” (olhe o tamanho da mesquinhez disso!), com um lugarzinho ao sol! Você já ouviu rico dizendo para alguém que o filho dele vai para escola para ser alguém na vida? Só se for “novo rico”, desses que ainda não perderam os cacoetes de pobre. Porque “rico convicto” não diz que o filho precisa ser alguém na vida: o filho dele já nasceu sendo gente. 
      Essa nossa história educacional é triste, absurda e ofensiva. A escola “moderna” brasileira, a escola da era industrial, mantém o mesmo espírito funcional de criadora de servos que a escola catequista possuía, mas agora revestida de um tom de “modernidade industrial”. Nenhum filho de pobre vai à escola porque a Constituição diz que ser uma pessoa educada e feliz é um direito de todos: ele vai é para “ser alguém”! Nenhum filho de pobre vai à escola para aprender a cuidar de sua vida, de sua saúde, de seu país, para aprender a mandar, a dirigir a própria existência, a ser senhor de seu destino: vai para aprender a apertar botões! Por isso a nossa escola ensina o silêncio e a submissão como regras máximas. O bom aluno é o aluno calado e obediente. 
      O que parece ser ainda mais grave é que essa escola, por muitas décadas, contou com o pontapé inicial da família, que ensinava um mínimo de educação e compostura às crianças antes da idade escolar. Porém, a família tradicional sucumbiu. Hoje, em grande parte das casas brasileiras, pais e mães vivem correndo atrás do dinheiro de cada dia e os filhos são educados pela TV, pela Internet ou, na maioria dos casos, pela rua. Simplesmente, não importa se a lei divide a responsabilidade da educação entre a escola e a família. Isso não tem a menor relevância! Os únicos fatos relevantes em relação a isso são que a família tradicional acabou e a escola não se move, não muda seus conceitos nem suas práticas, pois seu relógio está parado e seu calendário não é trocado há décadas. 
      Para resolver a questão, o Conselho Nacional de Educação - CNE criou os “conteúdos transversais”. Coisas essenciais e faltantes como a ética, a moral, a sexualidade e a saúde devem ser tratadas transversalmente ao longo de todas as matérias. Está na lei; mas, é balela. Ninguém faz. Na verdade, a ideia de transversalidade desses temas se baseia inconfessavelmente no medo inexplicável de perdermos nossa querida escola técnica e conteudista, essa que ensina a análise sintática e as equações de segundo grau como solução para os problemas do mundo. Isso precisa mudar! E rápido, pois o pontapé inicial da família na educação agora é um pontapé no traseiro dos alunos para que caiam na vida e se virem.
      Precisamos de um novo currículo urgentemente. Um currículo em que haja menos preocupação com conteúdos técnicos e mais preocupação com a vida. Temas como ética, moral, saúde e sexualidade precisam virar disciplinas regulares, com docentes capacitados para tratar maduramente desses temas e tempo para que a escola os trabalhe. Não podemos mais esperar que o professor de Física ou de Matemática discuta com os alunos por que eles não devem fumar crack.
      Se nossa escola não vê o tempo passar fora de seus muros, é preciso que alguém tome uma providência responsável. Enquanto o mundo pega fogo aqui fora, a nossa escola sem relógio nem calendário, dentro de seus portões mágicos, continua ensinando aos nossos pobres-filhos-pobres apenas “o núcleo do sujeito”, “a revolução farroupilha” e “o número atômico do estrôncio”. Para quê? Para ocupar o tempo que ela não vê passar? Para fingir que liberta enquanto sufoca e aprisiona? Para transformar “alguém que é ninguém”, em funcionário da prefeitura local? Afinal, o que se poderia esperar de um sistema educacional que não vê – ou finge que não vê - o tempo passar e o mundo se transformar? Ou seja, o que esperar de uma escola que ainda não aprendeu – e nem sei se um dia aprenderá – a sentir a vida pulsar?
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Por : Celso Ferrarezi Junior  - 24/04/2012
 "Celso Ferrarezi Junior possui licenciatura plena em Letras, mestrado e doutorado em Linguística com enfoque em Semântica, atuando principalmente com os seguintes temas: semântica, morfossintaxe, educação e alfabetização. Tem pós-doutorado em Semântica pela Universidade Estadual de Campinas. É membro de diversos conselhos editoriais e consultor de instituições educacionais e científicas privadas e governamentais. Atualmente, é professor associado da Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL-MG), cargo que também ocupou na Universidade Federal de Rondônia. Escreveu cerca de vinte e três livros científicos e literários, publicados por editoras como Globo, Mercado de Letras, Parábola, Contexto, Terceira Margem, Scortecci e editoras universitárias, além de mais de duzentos artigos científicos e de opinião publicados no Brasil e no exterior."


http://www.correioalfenense.com.br/site/noticia_detalhes.asp?id=52&noticia=357

3 comentários:

  1. Tô impressionado com o texto, MARAVILHOSO!

    Parabens pela Postagem.

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  2. Perfeito texto,temos em nossa raça, sangue ruim ,infelizmente. Poucos sabem disso.

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